terça-feira, 2 de outubro de 2007

Amnésia

Desligou o telefone sem saber ao certo quais palavras foram ditas nos minutos anteriores, talvez sua amnésia passageira se explicasse no sentir. Esfregava o rosto com as mãos no ritmo do choro canino que conseguia ouvir ao longe, cada vez que passava as mãos sobre os olhos e os pressionava via em sua mente as lembranças recentes do desentendimento que lhe causava aquela angústia, e como lhe parecia certo em seu julgamento, guardou os sentimentos revelando assim seu orgulho desejável.

Sufocado, reparou a dor em seu tímpano esquerdo, não uma dor casual como aquela causada por uma infecção, algo profundo, letal, que insistia em incomodar o pensamento, algo ferido pela arma mais poderosa, algo ferido por uma palavra, daquelas bem afiadas que furam e deixam cicatrizes. Pois bem, descobrira seu agressor e esse jamais poderia ser punido, viverá em eterno dentro de sua memória antes esquecida.
Logo, em sua garganta sente ranhuras provindas do mesmo agressor, as palavras insistiam em lhe molestar, queriam sair desesperadas para ferir outros ouvidos atentos, mas seu egoísmo prevalece e as mantém aprisionadas, e como agulhas lhe furam até o próximo gole de água ardente.
E assim se cala, sente, acende o último cigarro e mesmo sobre o sangue derramado reflete sobre o que o levou a tal estado e chega ao mesmo diagnóstico, elas, as palavras e seu poder incomensurável levaram a isso, simples e curtas como um projétil calibre 22 que não atravessa o corpo. Perfurado.
Deita-se delicadamente sobre as fronhas ainda secas, respira e vê sua sombra na parede sem feição sem palavras, apenas sua imagem projetada de forma destorcida pelos buracos do reboco, sorri de tristeza o sadismo do ato e se conforma infeliz pelas escolhas feitas. Delira num instante de erro e orgulhosamente engole as lagrimas como mérito do seu sofrimento solitário.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

A 12 metros

Dispunha-se impetuosa, firme e cheirosa, afastando qualquer olhar sedutor da sua beleza desconhecida, uma primeira rispidez executava esse ato com pleno sucesso. Em alguns dias de chuva torrencialmente linda deixava escapar um pequeno gesto de sua graça que ali ficava atirado no chão como fração do seu amor relapso que só bastava para o consumo imediato e o fim na satisfação mentirosa.

O risco da aleatoriedade de suas escolha se tornou real na insistência de uma paixão inesperada por aquele que recolheu do solo sua vontade reprimida. E o tal orgulhoso e necessitado daquele aroma, corriqueiramente freqüentava a presença da beleza apaixonante, com todo o medo da imponência que só lhe entregava restos mortos do que um dia sentiu.

Mesmo receoso, assustado e descrente o que lhe sobressaltava era a fascinação inconseqüente, em muitos momentos brincava a infância nostálgica, cansava e recostava aos pés dela no descanso intermitente. Mas se dava conta que a pontualidade dos fatos estava clara e sua elucidação trazia a tristeza a sua garganta, seus gritos ao longe ecoavam em rajadas de vento na pretensão da afetação por aquela que aceitava a transitoriedade do está.

Aquele sopro a tocou e a sinceridade da brisa fria e angustiada se desdobrou em gotas que encharcaram seu redor embebedando sua base com dor. No desespero da abstinência no seu local de solidão a coragem que a vontade convencia o fez correr e pedir a chance do tentar. No querer discreto seu desejo é cedido, pisa na poça e a escala com todo anseio.

Ultrapassa todos os obstáculos do seu corpo longo, um a um, se deliciando com o pegar, sobe freneticamente até o topo, ali sobre a luz radiante do sol olha admirado seu vermelho e sua forma perfeita e lá no alto conquista o melhor fruto, recolhe o pecado com a boca e delirando sente o sabor que a pitanga presente transmite em amor, enfim recebe todos as folhas em seu entorno, agora é ele e a pitanga.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Dias Vendidos.

“O trabalho enobrece o homem” já dizia o velho que pensava na sua sabedoria como singular, talvez fosse pela simples falta de coragem de ter encarado a questão para além do costume cotidiano.

Devorado pelo veneno monetário levantou-se, já tarde demais, com o gosto amargo da realidade que insistia em eliminar com a escova de dentes, preparava algo para o desjejum e se banhava esfregando o mal humor da segunda-feira, vestiu-se com sua armadura de algodão, pegou suas ferramentas e ao fechar a porta respirou o ar poluído e se trancou no mundo.

Na caminhada esboçou um sorriso para o sol na intenção de esquecer o martírio da cidade que aos pouco enferruja as justas das pernas, diminuindo os passos da conquista, outros ao redor já não têm a velocidade necessária e arrastando os pés a poucas polegadas demonstram na face às marcas da corrosão conformista.

Põe-se parado no local de embarque olhando para o relógio já esboçando certa preocupação com o tempo, com o dia, com os anos, com a certeza de ter que chegar apenas para comercializar o que é tão seu, num sentimento promiscuo e meretrício. Para! Pensa e repensa, reflete e por súbito aceita, és enfim um vendedor. Os barulhos dos freios lhe salvam do convencimento que parecia próximo, entra na condução observando os rostos que ali estão, se interessa em saber o que se passa em cada expressão, gesto, olhar e como um místico se dispõe a tentar adivinhar, mas logo adormece recostado no banco rígido ao minar do sacolejo da rua calejada pelo fluxo pondo um fim a sua distração prepotente.

Acorda de seu sono rápido e prazeroso, feliz por ter ao menos vivido a ilusão da imaginação, desce as escadas de poucos degraus e pisa já triste na realidade. A passos alvorecidos se direciona no vetor mecânico a atração magnética mercantil, abre o portão, fecha, percebe que os seus minutos de respiração se tornam caça níqueis.

Acendendo um cigarro e tomando um café enfim sorri ironicamente, como quem soubesse da sua necessidade, do seu poder, liquidificando seu trabalho em forma de suor, santificando sua humanidade dentre tantos outros, no cenário do “Admirável mundo novo” se sentiu um selvagem e gargalhou a inferioridade.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Páscoa pagã

Páscoa: s. f. 1. Festa anual dos judeus, comemorativa de sua saída do Egito. 2. Festa anual dos cristãos, comemorativa da ressurreição de Cristo.

Ambos significados só podem contribuir, mas jamais descrever a completude do que se dispôs a viver nessa data sagrada.

Santa, a quinta inicia-se na expectativa, coberta por nuvens e uma leve brisa úmida que suavemente cobria os vitrais, de tal modo, que era possível com o dedo desenhar símbolos, escrever bobagens com a certeza que a mesma brisa seria o apagador daquele desabafo inconsciente.

Todos os discípulos reunidos na mesa para o inicio da partilha, a mesma é feita a partir dos anseios de todos os presentes de se alimentarem da curiosidade alheia, desconhecimento se transforma em cumplicidade no milagre das palavras desprovidas de intenções catequizantes. Todos se levantam para o ritual de institucionalização do sacrilégio aos cânticos exaltados da consagração do prazer.

A ceia é servida com o gosto do orgasmo dos desejos, mãos, pernas, rostos e línguas se entrelaçam, como quando o fim da tarde acontecia viu novamente o embaço dos vidros, agora causado pela transpiração e suor de corpos satisfeitos, desenhava nele seu futuro próximo.

Judas se revela na face do acaso, denunciado a viver ao desespero do não querer, devorado pelo caos urbano do desencontro, julgado pela não afirmação da vontade do que já havia passado. Só lhe restou o martírio da cruz que pesava na consciência.

Malhando a burrada guardada na ignorância dos demais se propôs a assumir o caminho perdido no desgosto outrora tão cordial como dique daquilo que talvez lhe representasse um fiapo da vida, as desculpas se apresentaram em palavras litúrgicas impostas pela crença da esperança, que felizmente se consumaram no além.

Teve então a chance antes perdida no ato falho do real e utopicamente sorriu ao encontro da carne, na aparência feminil que novamente ao seu lado completava o vazio da fome que o sentimento reclamava. Ouvia o choro das nuvens encharcando os telhados enquanto deitado, saciado, acariciava seu troféu pela vida, respirando a quatro pulmões o prazer da ressurreição.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

1.000 em uma noite

As noites escrevem histórias nas estrelas, mesmo quando as nuvens tóxicas emitidas pelos automóveis insistem em encobri-las.

E para compor uma dessas histórias saiu enfim um dia para se perder na temporalidade, ansioso pelo inesperado, busca não sabia o que em um lugar qualquer, nessa cidade imensa não seria difícil alcançar seu objetivo.

Embarcou na viagem insólita. Feliz, empolgado e um pouco assustado, tinha a certeza que se entregaria ao destino que não costuma seguir os vetores regulares da vida cotidiana. Ouvia som alto rindo das previsões feitas ao seguir do caminho.

Olhando pela janela as luzes e pessoas excitavam seu âmago no anseio de viver uma realidade fictícia, pressupôs por um instante o perigo, mas logo relaxou. A cada quilometro rodado a música parecia se tornar mais alta as pessoas presentes mais ansiosas o momento de se revelar a noite estava ali.

A chegada é esperada, se ergue com o sorriso e gestos que demonstravam todos os anseios guardados nas calçadas passadas, caminha enfim para o coma que o ar noturno convida. Entra no antro que lhe trará para revelações, decepções, emoções, enfim, uma miscelânea de sensações.

Toma posse de sua bebida, acende um cigarro e tenta desenhar na fumaça toda a beleza do ato, do fato, do acontecido. Olhando bocas, pernas, mãos, o movimento constante da rapidez que despeja naquele ambiente segredos diários mascarados pela luz negra que ressalta o branco da alma.

A dança e os movimentos dominam seu corpo, brinca, pula, canta até o momento crucial, a música parece desaparecer junto com todas as outras pessoas, um incrível olhar captura sua atenção sente as pernas tremulas e as mãos frias, porém, o desejo é maior que o medo, se dispõe ao flerte, sorri, demonstra todo seu interesse.

Passo a passo se aproxima, chega tão perto que consegue sentir o perfume da doce dama se sobrepondo aos odores do ambiente, o primeiro contado é estranho ambos retrocedem a infância esquecida e engasgam as palavras, riem da própria timidez adorando o momento, trocam coincidências, costumes, alegrias se olham fixamente no olho um do outro ao som de alguma música que pareça ideal. Pega na mão dela acaricia seu rosto, aproxima-se dos seus lábios e vive o êxito da conquista, apaixona-se na loucura noturna que se cala.

segunda-feira, 26 de março de 2007

Sentimentos binários

Suando e tremulo dava cada passo em sentido a despedida, a consciência já lhe havia dito a algum tempo que seria inevitável, as claras os fatores e explicações foram dadas.

Antes do momento crucial observou o entorno, os movimentos, luzes, pessoas, objetos, sons. Um som em particular era comum a todos os presentes naquele ambiente, um ruído de apenas duas notas que se expandia através do sistema de auto falantes, som simples que tinha o objetivo de trazer a atenção para si, pois ele anunciava informações preciosas para aqueles que ali estavam.

O mais engraçado era como esse pequeno ruído era recebido pelas centenas de pessoas, que com ouvidos caninos tinham diferentes impressões e reações, alguns sorriam, outros esperavam, frustração, alegria, tristeza, uma disparidade indescritível de sensações.

Que compositor mágico poderia fazer essa canção de duas notas não tendenciosa, o som não falava de amores, de tristezas, de festas, de funerais, apenas anunciava aquele que a escutava que algo dentro dele deveria responder aquele estimulo, era uma campainha binária para o sentimento reprimido, som que desperta.

Chegava enfim o instante, se aproximou do que deveria fazer, o som não se cala, entregou a ela seu último apelo, um pequeno pacote, um abraço doloroso, um beijo no qual agora só resta o fel da certeza do adeus, um olhar, a lágrima tímida e o som gritando que agora ela deve embarcar em sua nova vida.

Está na hora, as assas da esperança levantam vôo.

Anda novamente no salão agora de volta, observa no chão sua sombra ficando para traz e desaparecendo no clarão da janela. O som não para nunca, novamente anuncia novas chegadas e despedidas.
“Binbon... Atenção passageiros com destino à...”